quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Dostoievski: Crime e Utopia


"- Não foi assim que eles puseram a questão - observou Porfíri. 
- É verdade - concordou logo Razumíkhin, atrapalhando-se e exaltando-se, conforme o seu costume. - Olha, Rodka, primeiro escuta, e depois dá a tua opinião. Gostava que o fizesses. Eu, ontem, estava numa ansiedade, à tua espera, tinha-lhes prometido que tu irias... A coisa começou pelo ponto de vista dos socialistas. Já se sabe qual é: o crime é um protesto contra a anormalidade do regime social... isso é só isso, e é escusado procurar-lhe outras causas...Acabou-se! 
- Mentira! - exclamou Porfíri Pietróvitch. Era notório que se entusiasmava, e sorria a cada instante, olhando para Razumíkhin.- Qual mentira! Hei de mostrar-te livros; segundo eles, todos os crimes se devem ao ambiente deletério, e nada mais. Magnífica frase! De onde se deduz, diretamente, que, se a sociedade estivesse normalmente constituída, então acabariam imediatamente todos os crimes, visto que já não haveria contra que protestar e todos passariam instantaneamente a ser inocentes. Quanto à natureza, não a tomam em consideração, puseram-na no olho da rua, não toleram a natureza. Para eles não é a natureza que, desenvolvendo-se de um modo histórico, vivo, até o fim, acabará por transformar-se ela própria numa sociedade normal, mas, pelo contrário, será o sistema social que, brotando de alguma cabeça matemática, procederá em seguida a estruturar toda a humanidade e, num abrir e fechar de olhos, a tornará justa e inocente, mais depressa do que qualquer processo vivo, sem seguir nenhum caminho histórico e natural. Por isso eles sentem instintivamente aversão pela história: nela só se encontra monstruosidade e estupidez; deitam todas as culpas para cima da estupidez. E por isso também não amam o processo "vital" da vida; não querem nada com a "alma viva". A alma viva da vida tem exigências; a alma viva não obedece mecanicamente; a alma viva é suspicaz; a alma viva é retrógrada. E, embora cheire a mortos, eles podem construir com a alma de borracha... que não será viva, nem terá vontade, será uma escrava e não se revoltará... E chegam ao resultado de idealizar um simples amontoado de tijolos, sim, a distribuição de corredores e quartos do falanstério. O falanstério está pronto; mas a vossa natureza ainda não o está para o falanstério; anseia pela vida, o processo vital ainda não terminou, ainda é cedo para a cova. É impossível saltar com a lógica apenas por cima da natureza. A lógica pressupõe três casos, ao passo que há milhões deles. Pois façam tábua rasa desses milhões e reduzam tudo ao simples problema do conforto! Essa é a solução mais fácil do enigma. Duma clareza sedutora, e evita o incômodo de pensar. Porque o essencial é isso: não ter que pensar. Todos os mistérios da vida podem compendiar-se em duas folhas de papel impresso."

(Trecho retirado de Crime e Castigo - livro escrito por Fiodor Dostoievski em 1866)

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Nicolas Poussin, mestre do classicismo


"As cores na pintura são como chamarizes que seduzem os olhos, como a beleza dos versos na poesia".

Nicolas Poussin (1594-1665) foi um pintor francês do século XVII - expoente máximo da escola do chamado Classicismo. Seu estilo é profundamente influenciado pelo legado clássico greco-romano e suas figuras humanas parecem ser baseadas, tanto na forma, quanto nas posturas, nas estátuas da Antiguidade. Isso explica tanto a rigidez das cenas,  quanto o heroísmo e a grandiosidade que emanam de suas obras.
Seus temas preferenciais eram paisagens e cenas mitológicas ou bíblicas. Homero, Virgílio, Ovídio e as Escrituras, são as inspirações constantes de sua arte.
Sua obra influenciou muito artistas do século XIX, como David e Ingres, representantes do neoclassicismo, e também Paul Cezanne, que chegou a afirmar: "Imagine Poussin completamente refeito - é isso que quero dizer com clássico".




 Midas e Baco



 O império de Flora


 Hélios e Phaeton com Saturno e as quatro estações.


 O abandono de Moisés



Os pastores da Arcádia

Os Homens Ocos - T.S. Eliot




Os Homens Ocos


"A penny for the Old Guy"
(Um pêni para o Velho Guy)

Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada


Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;


Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.


II

Os olhos que temo encontrar em sonhos
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem:
Lá, os olhos são como a lâmina
Do sol nos ossos de uma coluna
Lá, uma árvore brande os ramos
E as vozes estão no frêmito
Do vento que está cantando
Mais distantes e solenes
Que uma estrela agonizante.

Que eu demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
Que eu possa trajar ainda
Esses tácitos disfarces
Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas
E comportar-me num campo
Como o vento se comporta
Nem mais um passo

- Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular


III


Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui recebem elas
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.

E nisto consiste
O outro reino da morte:
Despertando sozinhos
À hora em que estamos
Trêmulos de ternura
Os lábios que beijariam
Rezam as pedras quebradas.


IV


Os olhos não estão aqui
Aqui os olhos não brilham
Neste vale de estrelas tíbias
Neste vale desvalido
Esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos

Neste último sítio de encontros
Juntos tateamos
Todos à fala esquivos
Reunidos na praia do túrgido rio

Sem nada ver, a não ser
Que os olhos reapareçam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino em sombras da morte
A única esperança
De homens vazios.


V

Aqui rondamos a figueira-brava
Figueira-brava figueira-brava
Aqui rondamos a figueira-brava
Às cinco em ponto da madrugada

Entre a idéia
E a realidade
Entre o movimento
E a ação
Tomba a Sombra
                    Porque Teu é o Reino

Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a reação
Tomba a Sombra
                     A vida é muito longa

Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
                       Porque Teu é o Reino
                       Porque Teu é
                       A vida é
                       Porque Teu é o

Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo

Não com uma explosão, mas com um suspiro.



(tradução de Ivan Junqueira)

T.S. Eliot (1888-1965) foi um dos maiores poetas do século XX. Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1948, é um símbolo do modernismo na literatura. Foi ainda, ensaísta, editor, escritor de peças de teatro, crítico literário e social. Uma das melhores obras sobre sua história e influência é "A Era de T.S. Eliot" escrita por Russell Kirk, e publicada no Brasil pela É Realizações. Há ainda uma coletânea da poesia de Eliot lançada recentemente no formato de bolso pela Editora Saraiva.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

O Humanismo Integral de Jacques Maritain

Jacques Maritain (1882-1973) foi sem sombra de dúvidas, um dos maiores pensadores do século XX. Filósofo católico, profundamente influenciado por Santo Tomás de Aquino, sua obra se caracteriza notadamente por buscar, não adaptar, mas através da doutrina cristã, encontrar os remédios para os males da modernidade que verificava em sua época.
Uma de suas obras mais relevantes é Humanisme Intégral de 1936, onde propõe um novo modelo de cristandade, apto a enfrentar e santificar os turbulentos tempos marcados por um ideal materialista burguês que perdeu a noção de Deus e que nesse processo perdeu seu próprio sentido. A ideia central do filósofo é de é necessário resgatar a noção de um de homem completo, integral, que não se realiza tão somente através das questões materiais, mas que deve (e necessita) ter como último fim a união com Deus. Dentro desse raciocínio, a sociedade deixa de ser um fim em si próprio, e passa a ser um instrumento para uma perfeita comunhão com o Cristo. Importa destacar que quando a obra era escrita, os regimes totalitários da Alemanha nazista, da Itália fascista e a URSS stalinista estavam em seu apogeu, e a ideia de um Estado fonte e finalidade de toda atividade humana era sedutora como nunca.
O conceito de Humanismo Integral elaborado por Maritain foi plenamente absorvido pela Igreja Católica, que transformou em um dos pilares de sua Doutrina Social.
Alguns trechos selecionados da obra:


Tomado em si mesmo, o mecanismo ideal da economia capitalista não é essencialmente mau e injusto, como acreditava Marx, entretanto a considerar o espírito que usa concretamente desse mecanismo, e que determina suas formas concretas e suas realizações particulares, deve dizer-se que esconde uma desordem radical.
A energia que estimula e entretém essa economia foi progressivamente corrompida por um pecado "capital"; não certamente por um pecado que dá a morte à alma dos indivíduos forçados a viver no seio desse mundo e a utilizar suas engrenagens , mas por um pecado que dá pouco a pouco a morte temporal ao corpo social: o culto do enriquecimento terrestre tornando-se a forma da civilização. O espírito objetivo do capitalismo é um espírito de exaltação das potências ativas e inventivas do homem e das iniciativas do indivíduo, mas é um espírito de ódio da pobreza e de desprezo do pobre; só existe o pobre como instrumento de  uma produção que rende, não como pessoa; o rico ademais só existe de seu lado, como consumidor (para o lucro do dinheiro que serve esta mesma produção), não como pessoa; e a tragédia de um mundo como tal é que, para entreter e desenvolver o monstro de uma economia usurária, será preciso necessariamente tender a transformar todos os homens em consumidores, ou ricos, mas então, se não há mais pobres, ou instrumentos, toda essa economia pára e morre; e morre também, como se vê em nossos dias, se não há suficientes consumidores para fazer trabalhar os instrumentos.
Não podeis transformar o regime social do mundo moderno senão provocando ao mesmo tempo, e principalmente em vós mesmos, uma renovação da vida espiritual e da vida moral penetrando até os fundamentos espirituais e morais da vida humana, renovando as ideias morais que presidem à vida do grupo social como tal e acordando nas profundezas deste um novo impulso...
Não tem por ofício a sociedade política conduzir a pessoa humana à sua perfeição espiritual e à sua plena liberdade de autonomia (isto é, a santidade, a um estado de libertação propriamente divino, porquanto é a vida mesma de Deus que então vive no homem). Entretanto a sociedade política é essencialmente destinada, em razão do próprio fim terrestre que a especifica , ao desenvolvimento de condições de meio que levem de tal sorte a multidão a um grau de vida material, intelectual convinhável ao bem e à paz do todo, que cada pessoa se sinta ajudada positivamente para a conquista progressiva de sua plena vida de pessoa e de sua liberdade espiritual.
A condenação lançada pelo cristão à civilização moderna é mais grave em verdade e mais motivada que a condenação socialista ou comunista, porquanto não é somente a felicidade terrestre da comunidade, é também a vida da alma, o destino espiritual da pessoa, que é ameaçado por esta civilização.
É impossível  - seria contrário à estrutura mental da humanidade, pois toda grande experiência , mesmo efetuada no erro, é orientada pela atração de certo bem, tão mal procurado como se suponha, e descobre por conseguinte regiões novas e novas riquezas a explorar, - é impossível conceber que tenham sido inúteis os sofrimentos e as experiências da era moderna. Procurou esta era, como dissemos, a reabilitação da criatura, procurou-a por maus caminhos, mas devemos reconhecer e salvar a verdade que nela se escondia, cativa.
Jacques Maritain foi ainda bastante influente no desenvolvimento do ideal de Democracia Cristã, e seu pensamento chegou a ter distintos representantes no Brasil como Gustavo Corção e Alceu Amoroso de Lima. Mas isso é outra história.