segunda-feira, 9 de maio de 2016

Porque sou contrário ao comunismo

Considero muito natural que em um primeiro momento alguém possa estar pensando: por que querer escrever sobre um tema tão batido, ultrapassado e insosso como esse? Ou ainda: "por que você precisa querer se justificar por suas opiniões"? E a resposta é que alguns "mal-entendidos" e preconceitos precisam ser desfeitos. Ser contrário ao comunismo não significa (necessariamente) que você seja um burguês que odeia os pobres, um nazista, um fanboy do Bolsonaro, um entusiasta da tortura ou um calhorda desalmado. Ou pior que isso, o tiozão que escreve com o capslock ligado pedindo o retorno do regime militar. Não. Há razões (e se me permitem dizer, sensatas e legítimas) para essa oposição, que não resvalam em ignorância, egoísmo, comodismo, ganância e aquela infinidade de adjetivos lisonjeiros que todos conhecemos.
De início, preciso reconhecer que as raízes históricas do pensamento comunista partem de uma preocupação com os pobres e oprimidos que é totalmente legítima e louvável. Também, que concordo em parte com o diagnóstico de Marx de que estaríamos em um processo avançado de perda de todos os valores que não possam ser expressos monetariamente na sociedade moderna. Ainda, que algumas observações sobre a natureza e deficiências do capitalismo (processo de globalização, ciclos de crescimento, constantes transformações nos padrões de consumo) me parecem acertadas. Porém, feitas essas observações, devo dizer me oponho veemente a visão de mundo comunista e seus projetos revolucionários. Pois sobre o comunismo, analisando primeiramente o pensamento de Marx, eu considero os fundamentos filosóficos incoerentes e equivocados, os meios propostos para uma mudança totalmente danosos à sociedade que pretende aprimorar, além de comprovadamente sangrentos, e seus objetivos finais, como contrários a própria natureza humana. É correto e desejável buscar o desenvolvimento humano, a melhoria das condições de vida de todas as pessoas, e um mundo mais justo e fraterno. Mas, certamente o comunismo não é a resposta para tais aspirações em minha humilde visão. Eis as razões:


 
1. As explicações dadas pelo comunismo as grandes questões da humanidade, são na melhor das hipóteses, simplórias: nessa visão de mundo, o homem não é nada mais do um macaco que deu certo, que foi capaz de produzir coisas, melhorar suas condições de vida nesse processo, mas que para isso sempre teve que explorar o seu semelhante. Nessa exploração estaria todo o mal. Tudo nessa ideologia é voltado tão somente às condições materiais - a arte, a religião, a moral são apenas instrumentos utilizados para continuar a exploração (superestruturas), carentes de qualquer valor ou significado em si mesmos. É um mundo deveras pobre, vazio de significado, transcendência e beleza.
 
2. O comunismo aparentemente tem uma moral inerente a si mesmo ao considerar errado e injusto a exploração de um ser humano por outro (o que eu concordo totalmente) – mas que no instante seguinte joga pela janela toda noção de moral ou direito fixos, considerando que seriam sempre reflexos de dado momento histórico e sempre utilizados como meio de perpetuação da opressão pelos grupos dominantes. Ora, a partir do que então, de que referência, de que parâmetros, o comunista poderia considerar errado que o burguês continue a explorar o proletário, se não há nenhuma forma de moral ou justiça superior de onde se possa deduzir o que é certo ou errado, justo ou injusto, bom ou mau? Seria essa conclusão proveniente apenas da observação das sensações físicas, do desconforto, da dor, do cansaço? 
 
3. Há uma visão maniqueísta da realidade: demoniza-se o burguês e se enaltece o proletário, sem condições, “mas”, “senãos” ou “porquês”. O burguês é opressor por sua própria condição, independente de seu caráter, personalidade ou vontade. Não há bom burguês para o comunismo – todos devem ser eliminados enquanto classe. Não se consideram indivíduos, se considera apenas a classe. Para a teoria marxista ser válida e funcionar, nega-se a individualidade e o livre arbítrio do ser humano. O que então o comunismo considera como ‘ser humano’, eu por minha vez, não tenho a mínima ideia. 
 
4. Um desdobramento da ideia anterior é que parte-se da noção de que o indivíduo tem sua visão condicionada pela classe a que pertence. O burguês nunca conseguiria ver as coisas senão como um burguês. Nunca conseguiria entender as reais condições e motivações do proletário. Todas suas ideias de liberdade, cultura, direito seriam produtos de seu modo de produção, dessa “superestrutura ideológica”. Assim, apenas o proletário e seu representante máximo, o comunista seriam capazes de enxergar a realidade como realmente se apresenta e tomar a atitude necessária para sua mudança dessas condições. Não sei vocês, mas todos os simpatizantes do comunismo que eu conheço são bem burgueses, dentro dessa visão dualista de mundo. Mesmo Marx, nunca exerceu qualquer atividade laboral que pudesse qualifica-lo como proletário. Como então o comunista pode adquirir essa visão que perpassa a da classe a qual pertence, e do porquê, ou como outros poderiam repetir tal feito extraordinário, continua sendo um mistério. De qualquer forma, o comunismo se apresenta assim como uma espécie de gnose moderna, quase uma seita que apenas alguns iniciados poderiam atingir a visão verdadeira da realidade, mediante a iniciação em seus quadros.
 
5. O desprezo por instituições basilares da civilização. Conforme o que escrevem Marx e Engels em 1848, no Manifesto do Partido Comunista, a família já havia sido completamente corrompida pelo modo burguês de produção, pois segundo os autores, no seio das relações familiares o afeto teria sido substituído pela busca do lucro. Assim, para os comunistas ortodoxos, a família é uma instituição superada, falida, e ausente de seus ideais de mundo melhor. Fiel a essa visão de mundo, na família segundo a visão comunista também é ressaltado a suposta relação de exploração entre seus membros, e noções como de amor, respeito, carinho em seu âmbito se existiram, já se foram, e pelo jeito, não farão falta no paraíso do proletariado. 
 
6. O socialismo sempre significou controle estatal dos meios de produção. Tendo isso em mente, o economista Ludwig von Mises já refutou teoricamente o socialismo na década de 20 do século passado, demonstrando que se trata de uma impossibilidade prática. Seu argumento era o seguinte: se o governo detém todos os bens de capital (máquinas, ferramentas, instalações etc.) de uma economia, então não haveria um mercado para esses bens. Não havendo mercado para esses bens, não há uma correta formação de preços para eles. Sem preços, os planejadores não têm como estabelecer o valor dessas ferramentas. Consequentemente, não há como uma agência de planejamento central determinar quais são os custos de produção dos bens de consumo mais demandados. Com efeito, não há sequer como determinar quais os bens de consumo mais demandados. É necessário que exista um livre mercado para que haja uma processo de estabelecimento dos preços dos bens de consumo e dos bens de capital. Em uma economia socialista, não há nenhum dos dois. Assim, nas palavras de von Mises, o planejamento econômico socialista é inerentemente irracional.

7. O comunismo nega Deus e qualquer sentido supra-terreno à vida humana. As religiões são algo a ser combatido duramente pelo comunista, por tirarem o ânimo do proletário de rebelar-se contra sua opressão. Nesse contexto, a ideia de um Deus é uma grande farsa, criada para justificar a exploração dos detentores dos meios de produção, mantendo os oprimidos submissos e conformados com sua situação material. Aqui há uma coerência no pensamento marxista que muitos “religiosos” parecem não ter, pois realmente não há como crer em um Deus misericordioso e em sua Divina Providência, e ao mesmo tempo acreditar no conflito de classes como motor da história humana e no materialismo dialético. Simplesmente são pensamentos excludentes, necessariamente opostos.

8. A felicidade é apenas e tão somente ligada às condições matérias e sociais. Nega-se qualquer possibilidade de que uma pessoa em uma situação supostamente de opressão, seja feliz, tenha uma vida plena apesar de sua condição. Por outro lado, a felicidade burguesa seria sempre fruto da desgraça,do sangue e suor do proletário. Dentro dessa visão simplista de ser humano, apenas a partir da satisfação das necessidades materiais se encontraria o sentido para a existência da pessoa. Óbvio que nossa felicidade depende da realização de nossas necessidades vitais, mas mesmo em situações extremas, o ser humano sempre foi capaz de elevar-se das suas misérias e dificuldades, e aspirar a uma vida digna e significativa, senão próspera e confortável. E ainda, há um número significativo de pessoas que a despeito de sua riqueza, levam vidas absolutamente miseráveis e vazias. A resposta não pode estar aqui.
 
9. Além da questão da felicidade, essa importância extrema dada as condições externas gera uma crença absoluta no condicionamento do comportamento humano a esses fatores sociais. Se nega a possibilidade, por exemplo, de que um santo possa viver em uma sociedade corrupta. Pelo marxismo ortodoxo, entende-se que mudando a situação material, os problemas (até hoje inerentes ao ser humano) seriam extintos. Elimina-se a propriedade privada, todos tornam-se iguais e voilá, todas as misérias da humanidade deixam de existir: inveja, cobiça, raiva, violência tudo isso acaba, pois todas essas mazelas eram fruto da situação de exploração. Utilizando-se dessa lógica, ricos nunca poderiam cometer crimes ou serem más pessoas, afinal de contas, não são levados a isso por serem oprimidos... Mas ainda nessa mesma lógica, por outro lado, os ricos são sempre inerentemente maus, pois em razão de sua classe, são sempre opressores dos pobres, sempre... Assim, tudo se justifica, todo o mal se explica pela posição que a pessoa ocupa na sociedade, e pelo fato de que há um desnível nessas posições. Mais simplista do que isso, impossível. É fato que os fatores materiais são relevantes e influentes no desenvolvimento do indivíduo, mas a psique humana é muito mais complexa do que essa visão nos sugere.
 
10. Segundo o comunismo não há uma natureza humana comum exterior às diferenças históricas, sociais e econômicas, e o único fator comum presente em toda a história humana, segundo esse pensamento, é a exploração. As ideias são resultado do modo de produção e de fatores materiais. Assim, não poderia haver igualdade entre pessoas de diferentes classes sociais, entre o burguês e o proletariado. Seria só a partir da extinção das classes, através da vitória final do proletário e que todos os indivíduos estarão basicamente expostos ao mesmo meio de produção e as mesmas condições materiais de desenvolvimento, que as ideias, os valores poderiam ser compartilhados por todos, e além da recém-conquistada igualdade material, poderia existir igualdade nos aspectos morais, culturais, “espirituais” da sociedade. A matéria forma o ‘espírito’ - somente alterando a matéria se atingiria o espírito. Claro que o termo espírito aqui é utilizado analogicamente, pois o pensamento marxista rechaça tal conceito. “Espírito” pode ser tido como o cerne, o caráter do ser. Nesse campo, eu oponho a noção marxista ao que o cristianismo sempre ensinou através dos séculos, pois podemos dizer que efetivamente não há ponto de contato entre esses dois ideais. Para o cristão, independente da classe social, condição econômica ou qualquer fator material, todos os homens partilham de uma essência comum, são todos criados pelo mesmo Deus, expostos aos mesmos males e sofrimentos e necessitando sempre da Graça Divina para sua completude como filhos de Deus. A igualdade é então, algo do qual se parte, algo que já é intrínseco a todos os homens, pois todos são iguais perante Deus – do presidente ao vendedor, da dona de casa a rainha, todos compartilham de uma natureza comum, criada por Deus. O desenvolvimento social e material, certamente pode auxiliar com que cada um possa atingir seu potencial, mas não é condição indispensável para a realização plena do ideal de ser humano, quando se percebe que Deus é a fonte suprema de todo Bem. 
 
11. Por último, mas certamente não menos importante, as mortes. As muitas e muitas mortes que essa ideologia justificou. Quase 100 milhões em menos de 100 anos, para ser um pouco mais exato, desde que começaram as tentativas de implementarem-se sociedades nos moldes dos ditames prescritos por Marx, Lênin, Mao entre outros comunistas eminentes. A relação de vítimas vai desde os ucranianos mortos de forme por Stálin na Golodomor de 1932, aos chineses mortos no “Grande Salto para frente” de Mao; dos cubanos opositores executados nos paredóns, até as guerras civis em países africanos – nenhuma ideologia matou tanta gente, e em tão pouco tempo. A implementação de um regime comunista em um país invariavelmente envolveu o derramamento de uma quantia significativa de sangue. 
E ao meio desse processo, em que surgiam as dificuldades previsíveis de como lidar com uma economia nos modelos propostos desse sistema (item 6), o que ocorreu foi a morte pela fome de milhões de pessoas, crianças, idosos, mulheres e homens. Esses são os resultados práticos da experiência comunista: mortes, mortes e mais mortes
 
 A exceção de Cuba e Coréia do Norte, todos os países que adotaram o socialismo, perceberam sua completa inviabilidade e o abandonaram após certo tempo. Em alguns deles, como a Ucrânia, por exemplo, fazer apologia ao comunismo, tornou-se um crime punível por lei. Para um sistema que se entendia totalmente científico, me parece que o processo de tentativa e erro, próprio do método científico vem dando uma resposta clara à inviabilidade prática da criação de uma sociedade comunista. Quantos milhões mais teriam que morrer, até que finalmente se perceba que esse é um projeto falido?
Como já afirmou certa vez, o filósofo britânico Roger Scruton, o socialismo não DÁ errado, ele já É errado. 

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Heráclito Sobral Pinto, o maior advogado da história brasileira

Em um país tão carente de exemplos, de heróis, de pessoas que viveram e atuaram na sociedade com princípios e dignidade, é vital lembrarmos e cultuarmos a memória de homens como Sobral Pinto. Muito se pode contar sobre sua história, e para aqueles que se interessem, eu recomendo fortemente o filme "Sobral - o Homem que não Tinha Preço" de 2013. Tentarei expor algumas das virtudes do homem, ilustrando-as com episódios de sua vida apenas:

Todas as pessoas que conheceram Sobral Pinto são unânimes em afirmar que sua vida foi basicamente alicerçada em sua fé católica - tendo ele sempre regido sua ações pelos princípios da Igreja, e dali tirando a força e a coragem para as batalhas da sua vida profissional. Sobral atendia à missa e comungava diariamente na Igreja mais próxima de sua casa.

Dever
Outro pilar da vida de Sobral foi sua noção clara da importância do dever, sua fé na profissão do advogado, e o que dali emanava: a crença fundamental de que absolutamente todos tem direito a serem defendidos, e que o Estado não poderia atentar contra os direitos e garantias de ninguém.
Um exemplo notório de como ele tinha a noção de dever como um princípio inabalável , foi quando Sobral - católico fervoroso, como se disse - ao ser indicado pela OAB para essa tarefa, aceitou defender Luís Carlos Prestes, líder comunista, que foi preso no levante de 1935 por Getúlio Vargas. Ele justificou a decisão argumentando que: "Quaisquer que sejam as minhas divergências com o comunismo materialista – e elas são profundas -, não me esquecerei nesta investidura que o Conselho da Ordem me impôs, que simbolizo, em face da coletividade brasileira exaltada e alarmada, a defesa".

Excelência
Sua atuação nesse caso, que envolvia ainda outro líder comunista, o alemão Harry Berguer, foi das mais notórias e é estudada até hoje em cursos de Direito . Não encontrando outros meios favoráveis, não teve dúvidas, e para garantir a integridade desses presos políticos, em especial, Berguer, evocou a Lei de Proteção dos Animais numa petição histórica, em favor de tratamento humanitário para prisioneiros.

Caridade
A lista dos clientes de quem não recebia honorários chegou a mais de trezentos nomes. Entre esses, alguns ilustres como Miguel Arraes, Mauro Borges, Francisco Julião, João Pinheiro Neto, entre outros.  Seus familiares e amigos afirmam que ele sempre encarou a advocacia como uma doação de si, como um meio de auxiliar quem mais precisasse, não um mero meio para busca de enriquecimento.

Prudência
Sobral chegou a apoiar a revolução de 1964 em um primeiro momento, por sua posição anticomunista. Mas tão logo foram se manifestando posturas antidemocráticas nesse regime, passou a ser um ardoroso combatente das irregularidades cometidas.
Apesar de sua oposição ao regime militar, era essencialmente conservador, tendo várias diferenças, por exemplo, com a figura de Lula, por acreditar que ele não tinha preparo intelectual para a política.

Hombridade
Certa ocasião, um oficial-general, talvez em virtude de sua defesa tenaz dos presos políticos, teve a infelicidade de chamá-lo “comunista”.  Resposta imediata do mestre:
" - Comunista é a puta que o pariu."
Tom absolutamente fora do padrão de Sobral, sempre educado e polido em suas maneiras. Por isso, não foi preso nem processado, mas ficou comprovado o ditado de que “quem fala o que quer, escuta o que não quer”.
Por essa e por outras, o "Sr. Liberdade", como era chamado, é das personalidades brasileiras mais marcantes do século XX, um homem que viveu e trabalhou com coragem, amor e determinação. Um exemplo de dignidade e honra, e um modelo singular para qualquer um que queira encarar sua profissão como um sacerdócio. Homens assim, não podem e não devem ser esquecidos.





quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Dostoievski: Crime e Utopia


"- Não foi assim que eles puseram a questão - observou Porfíri. 
- É verdade - concordou logo Razumíkhin, atrapalhando-se e exaltando-se, conforme o seu costume. - Olha, Rodka, primeiro escuta, e depois dá a tua opinião. Gostava que o fizesses. Eu, ontem, estava numa ansiedade, à tua espera, tinha-lhes prometido que tu irias... A coisa começou pelo ponto de vista dos socialistas. Já se sabe qual é: o crime é um protesto contra a anormalidade do regime social... isso é só isso, e é escusado procurar-lhe outras causas...Acabou-se! 
- Mentira! - exclamou Porfíri Pietróvitch. Era notório que se entusiasmava, e sorria a cada instante, olhando para Razumíkhin.- Qual mentira! Hei de mostrar-te livros; segundo eles, todos os crimes se devem ao ambiente deletério, e nada mais. Magnífica frase! De onde se deduz, diretamente, que, se a sociedade estivesse normalmente constituída, então acabariam imediatamente todos os crimes, visto que já não haveria contra que protestar e todos passariam instantaneamente a ser inocentes. Quanto à natureza, não a tomam em consideração, puseram-na no olho da rua, não toleram a natureza. Para eles não é a natureza que, desenvolvendo-se de um modo histórico, vivo, até o fim, acabará por transformar-se ela própria numa sociedade normal, mas, pelo contrário, será o sistema social que, brotando de alguma cabeça matemática, procederá em seguida a estruturar toda a humanidade e, num abrir e fechar de olhos, a tornará justa e inocente, mais depressa do que qualquer processo vivo, sem seguir nenhum caminho histórico e natural. Por isso eles sentem instintivamente aversão pela história: nela só se encontra monstruosidade e estupidez; deitam todas as culpas para cima da estupidez. E por isso também não amam o processo "vital" da vida; não querem nada com a "alma viva". A alma viva da vida tem exigências; a alma viva não obedece mecanicamente; a alma viva é suspicaz; a alma viva é retrógrada. E, embora cheire a mortos, eles podem construir com a alma de borracha... que não será viva, nem terá vontade, será uma escrava e não se revoltará... E chegam ao resultado de idealizar um simples amontoado de tijolos, sim, a distribuição de corredores e quartos do falanstério. O falanstério está pronto; mas a vossa natureza ainda não o está para o falanstério; anseia pela vida, o processo vital ainda não terminou, ainda é cedo para a cova. É impossível saltar com a lógica apenas por cima da natureza. A lógica pressupõe três casos, ao passo que há milhões deles. Pois façam tábua rasa desses milhões e reduzam tudo ao simples problema do conforto! Essa é a solução mais fácil do enigma. Duma clareza sedutora, e evita o incômodo de pensar. Porque o essencial é isso: não ter que pensar. Todos os mistérios da vida podem compendiar-se em duas folhas de papel impresso."

(Trecho retirado de Crime e Castigo - livro escrito por Fiodor Dostoievski em 1866)

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Nicolas Poussin, mestre do classicismo


"As cores na pintura são como chamarizes que seduzem os olhos, como a beleza dos versos na poesia".

Nicolas Poussin (1594-1665) foi um pintor francês do século XVII - expoente máximo da escola do chamado Classicismo. Seu estilo é profundamente influenciado pelo legado clássico greco-romano e suas figuras humanas parecem ser baseadas, tanto na forma, quanto nas posturas, nas estátuas da Antiguidade. Isso explica tanto a rigidez das cenas,  quanto o heroísmo e a grandiosidade que emanam de suas obras.
Seus temas preferenciais eram paisagens e cenas mitológicas ou bíblicas. Homero, Virgílio, Ovídio e as Escrituras, são as inspirações constantes de sua arte.
Sua obra influenciou muito artistas do século XIX, como David e Ingres, representantes do neoclassicismo, e também Paul Cezanne, que chegou a afirmar: "Imagine Poussin completamente refeito - é isso que quero dizer com clássico".




 Midas e Baco



 O império de Flora


 Hélios e Phaeton com Saturno e as quatro estações.


 O abandono de Moisés



Os pastores da Arcádia

Os Homens Ocos - T.S. Eliot




Os Homens Ocos


"A penny for the Old Guy"
(Um pêni para o Velho Guy)

Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada


Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;


Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.


II

Os olhos que temo encontrar em sonhos
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem:
Lá, os olhos são como a lâmina
Do sol nos ossos de uma coluna
Lá, uma árvore brande os ramos
E as vozes estão no frêmito
Do vento que está cantando
Mais distantes e solenes
Que uma estrela agonizante.

Que eu demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
Que eu possa trajar ainda
Esses tácitos disfarces
Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas
E comportar-me num campo
Como o vento se comporta
Nem mais um passo

- Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular


III


Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui recebem elas
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.

E nisto consiste
O outro reino da morte:
Despertando sozinhos
À hora em que estamos
Trêmulos de ternura
Os lábios que beijariam
Rezam as pedras quebradas.


IV


Os olhos não estão aqui
Aqui os olhos não brilham
Neste vale de estrelas tíbias
Neste vale desvalido
Esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos

Neste último sítio de encontros
Juntos tateamos
Todos à fala esquivos
Reunidos na praia do túrgido rio

Sem nada ver, a não ser
Que os olhos reapareçam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino em sombras da morte
A única esperança
De homens vazios.


V

Aqui rondamos a figueira-brava
Figueira-brava figueira-brava
Aqui rondamos a figueira-brava
Às cinco em ponto da madrugada

Entre a idéia
E a realidade
Entre o movimento
E a ação
Tomba a Sombra
                    Porque Teu é o Reino

Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a reação
Tomba a Sombra
                     A vida é muito longa

Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
                       Porque Teu é o Reino
                       Porque Teu é
                       A vida é
                       Porque Teu é o

Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo

Não com uma explosão, mas com um suspiro.



(tradução de Ivan Junqueira)

T.S. Eliot (1888-1965) foi um dos maiores poetas do século XX. Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1948, é um símbolo do modernismo na literatura. Foi ainda, ensaísta, editor, escritor de peças de teatro, crítico literário e social. Uma das melhores obras sobre sua história e influência é "A Era de T.S. Eliot" escrita por Russell Kirk, e publicada no Brasil pela É Realizações. Há ainda uma coletânea da poesia de Eliot lançada recentemente no formato de bolso pela Editora Saraiva.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

O Humanismo Integral de Jacques Maritain

Jacques Maritain (1882-1973) foi sem sombra de dúvidas, um dos maiores pensadores do século XX. Filósofo católico, profundamente influenciado por Santo Tomás de Aquino, sua obra se caracteriza notadamente por buscar, não adaptar, mas através da doutrina cristã, encontrar os remédios para os males da modernidade que verificava em sua época.
Uma de suas obras mais relevantes é Humanisme Intégral de 1936, onde propõe um novo modelo de cristandade, apto a enfrentar e santificar os turbulentos tempos marcados por um ideal materialista burguês que perdeu a noção de Deus e que nesse processo perdeu seu próprio sentido. A ideia central do filósofo é de é necessário resgatar a noção de um de homem completo, integral, que não se realiza tão somente através das questões materiais, mas que deve (e necessita) ter como último fim a união com Deus. Dentro desse raciocínio, a sociedade deixa de ser um fim em si próprio, e passa a ser um instrumento para uma perfeita comunhão com o Cristo. Importa destacar que quando a obra era escrita, os regimes totalitários da Alemanha nazista, da Itália fascista e a URSS stalinista estavam em seu apogeu, e a ideia de um Estado fonte e finalidade de toda atividade humana era sedutora como nunca.
O conceito de Humanismo Integral elaborado por Maritain foi plenamente absorvido pela Igreja Católica, que transformou em um dos pilares de sua Doutrina Social.
Alguns trechos selecionados da obra:


Tomado em si mesmo, o mecanismo ideal da economia capitalista não é essencialmente mau e injusto, como acreditava Marx, entretanto a considerar o espírito que usa concretamente desse mecanismo, e que determina suas formas concretas e suas realizações particulares, deve dizer-se que esconde uma desordem radical.
A energia que estimula e entretém essa economia foi progressivamente corrompida por um pecado "capital"; não certamente por um pecado que dá a morte à alma dos indivíduos forçados a viver no seio desse mundo e a utilizar suas engrenagens , mas por um pecado que dá pouco a pouco a morte temporal ao corpo social: o culto do enriquecimento terrestre tornando-se a forma da civilização. O espírito objetivo do capitalismo é um espírito de exaltação das potências ativas e inventivas do homem e das iniciativas do indivíduo, mas é um espírito de ódio da pobreza e de desprezo do pobre; só existe o pobre como instrumento de  uma produção que rende, não como pessoa; o rico ademais só existe de seu lado, como consumidor (para o lucro do dinheiro que serve esta mesma produção), não como pessoa; e a tragédia de um mundo como tal é que, para entreter e desenvolver o monstro de uma economia usurária, será preciso necessariamente tender a transformar todos os homens em consumidores, ou ricos, mas então, se não há mais pobres, ou instrumentos, toda essa economia pára e morre; e morre também, como se vê em nossos dias, se não há suficientes consumidores para fazer trabalhar os instrumentos.
Não podeis transformar o regime social do mundo moderno senão provocando ao mesmo tempo, e principalmente em vós mesmos, uma renovação da vida espiritual e da vida moral penetrando até os fundamentos espirituais e morais da vida humana, renovando as ideias morais que presidem à vida do grupo social como tal e acordando nas profundezas deste um novo impulso...
Não tem por ofício a sociedade política conduzir a pessoa humana à sua perfeição espiritual e à sua plena liberdade de autonomia (isto é, a santidade, a um estado de libertação propriamente divino, porquanto é a vida mesma de Deus que então vive no homem). Entretanto a sociedade política é essencialmente destinada, em razão do próprio fim terrestre que a especifica , ao desenvolvimento de condições de meio que levem de tal sorte a multidão a um grau de vida material, intelectual convinhável ao bem e à paz do todo, que cada pessoa se sinta ajudada positivamente para a conquista progressiva de sua plena vida de pessoa e de sua liberdade espiritual.
A condenação lançada pelo cristão à civilização moderna é mais grave em verdade e mais motivada que a condenação socialista ou comunista, porquanto não é somente a felicidade terrestre da comunidade, é também a vida da alma, o destino espiritual da pessoa, que é ameaçado por esta civilização.
É impossível  - seria contrário à estrutura mental da humanidade, pois toda grande experiência , mesmo efetuada no erro, é orientada pela atração de certo bem, tão mal procurado como se suponha, e descobre por conseguinte regiões novas e novas riquezas a explorar, - é impossível conceber que tenham sido inúteis os sofrimentos e as experiências da era moderna. Procurou esta era, como dissemos, a reabilitação da criatura, procurou-a por maus caminhos, mas devemos reconhecer e salvar a verdade que nela se escondia, cativa.
Jacques Maritain foi ainda bastante influente no desenvolvimento do ideal de Democracia Cristã, e seu pensamento chegou a ter distintos representantes no Brasil como Gustavo Corção e Alceu Amoroso de Lima. Mas isso é outra história.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Sobre espantalhos e conservas


Há algum tempo, os adjetivos conservador e neoliberal  viraram palavrões na pena de muita gente influente, mas de modo especial nos artigos e blogs que representam o lado esquerdo da Força, principalmente nessa época em que o Império Contra-ataca e muitos esperam o retorno do Jedi.

Eu mesmo, por muito tempo usei os termos pejorativamente, e achava que conservadores, afinal de contas, deveriam ser sujeitos muito estúpidos e malvados por não quererem que as coisas mudassem para melhor. Neoliberais, então nem se fala: se comunistas comeriam criancinhas, neoliberais torturariam e comeriam cachorrinhos fofinhos - o que para o homem médio hoje em dia, parece ser bem pior.

Mas... o tempo passa, a leitura e a experiência se acumulam, as ideias assentam, as reflexões tornam-se mais profundas, e acabamos vendo que, para pôr em termos mais simples, fomos babacas e falamos de coisas que não tínhamos a mínima ideia do que se tratava. Foi o meu caso (infelizmente).

Então, compartilhando minha experiência prévia - a quem queira, talvez, xingar com mais propriedade, ou ainda quem sabe (?), rever seus conceitos, recomendo a leitura de alguma coisa de alguns escritores que se debruçaram sobre os temas do conservadorismo e do liberalismo : são estes, Russell Kirk, Edmund Burke, T.S. Eliot (a prosa, não a poesia). F.A. Hayek, Ludwig Von Mises,Michael Oakshott,  J.P. Coutinho, J.O. Meira Penna, Samuel Johnson e Adam Smith. Se mesmo conhecendo o trabalho desses pensadores, você mantiver suas opiniões prévias (o que é possível, visto que a meu ver, o posicionamento político está mais ligado a afinidades e sentimentos, do que à racionalidade estrita na maioria dos casos), ok, podemos concordar em discordar civilizadamente.

Mas ao menos,  ponha em prática os ensinamentos de Sun Tzu na Arte da Guerra - conheça seus inimigos. Porque por exemplo: definitivamente, não, o PSDB não representa a direita - é o 'Partido da Social-Democracia Brasileira' percebe? Gostando, ou não, "traidores do movimento, véio" - como já diria Dado Dolabella sacando sua machadinha(1) - ou não, o fato que a democracia brasileira é uma espécie de 50 tons de vermelho com quase todos os partidos pregando um Estado forte, bastante intervenção na economia, vários benefícios e incentivos visando em tese, reduzir a desigualdade social. Como os projetos todos, não são lá muito diferentes em suas cosmovisões, o que se disputa de verdade é o poder, pura e simplesmente. Não há uma verdadeira dialética de ideias. Os que querem chegar lá, sempre se vendem como progressistas, transformadores e os que já estão estabelecidos, já detém alguma forma de poder, acabam sendo vistos como "conservadores", ainda que defendam basicamente as mesmas ideias do grupo oposto. Nada mais caricato e rasteiro.

Então, antes de sair por aí, apavorando os "conservas", tentar descobrir o que exatamente, o termo representa no ideário político/filosófico, é bem interessante. Pode até ser que você descubra algo que te interesse, ou talvez, que o conservadorismo, a direita, é ainda pior do que você pensava. Dando uma palhinha, eu diria que é a "ideologia que nega as ideologias", ou o "ceticismo político". De qualquer forma, com a busca de informações o debate real sairia enriquecido. Afinal de contas, rebater o argumento de "espantalhos" é sempre mais fácil. E também, inútil.

Sugestão de ensaios/artigos:

http://www.kirkcenter.org/index.php/detail/ten-conservative-principles/
http://www.theimaginativeconservative.org/2014/10/roger-scruton-modern-political-conservatism.html
http://exame.abril.com.br/revista-exame/noticias/nos-os-de-direita

(1) Para quem não lembra: https://www.youtube.com/watch?v=wqKqLOnX_zw